A encruzilhada das fábricas de aviões civis

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Por Agência Brasil    

Por Cesar Graça

O Brasil é o terceiro polo de produção de aviões civis do mundo. É uma das poucas áreas na qual o Brasil tem uma liderança destacada na área industrial. E ela está passando por um momento delicado. A epidemia reduziu a demanda por voos. O que levou a uma sobra de aviões e diminui a demanda por novos aviões, criando um grande estoque de aviões usados, a um preço de ocasião.

Hoje, depois de dois anos do início da epidemia, a quantidade de voos, no mundo, ainda está na metade do que era antes do início da epidemia. Os especialistas acreditam que o mercado de voos vai voltar aos patamares de antes da epidemia no final de 2025. Mas isso é só uma previsão. Pode ser que a recuperação demore mais tempo, ou não. O quanto mais demorar, pior fica para as fábricas de aviões.

O mercado interno brasileiro se recuperou com maior velocidade. Já está quase alcançando os patamares de antes da epidemia. Essa é uma peculiaridade da economia brasileira. Ela está se recuperando mais rapidamente, que a economia mundial. Isso em função do aumento dos preços das commodities. Já os voos internacionais, no Brasil, seguem o padrão mundial. Eles estão pela metade de antes da epidemia. Pois, por causa da epidemia, o Brasil sofre com as restrições de voos entre os países.

O preço dos aviões usados despencou. O que facilitou a criação de novas empresas aéreas. Por outro lado, vender aviões novos ficou muito mais difícil. O principal apelo é a redução do consumo de combustíveis. Os aviões atuais são 20% mais econômicos que os aviões produzidos há 10 anos. Outra vantagem dos aviões novos é o nível de ruído. Alguns como os Embraer da série E2 e os Airbus 220 são muito mais silenciosos. Outra vantagem, como o Airbus 321 XLR, alguns aviões novos médios têm uma grande autonomia e o seu tamanho é bem menor, que os grandes jatos de dois corredores. O que favorece os voos à grande distância, com menos passageiros. O mercado de aviões está mudando rapidamente. O que era válido há dez anos, hoje já não é mais. O mercado demanda novos aviões, com características diferentes.

Os passageiros estão dando preferência e pagando mais pelos voos diretos, ao invés dos voos com conexão. Essa é uma mudança que veio para ficar.

No entanto, para os voos regulares, com muitas conexões, os aviões mais velhos atendem bem às necessidades, com exceção do gasto a mais de combustível. A vantagem, dos aviões velhos, é de não ser necessário fazer grandes investimentos. Existe uma grande quantidade de aviões grandes e com grande autonomia disponíveis nos estoques. Só que esse mercado diminuiu muito de tamanho.

A demanda de novos aviões caiu bastante. O futuro da demanda de novos aviões vai depender bastante da evolução de epidemia e a retomada dos voos. O que parece algo muito incerto neste momento. Isso quer dizer que aviões grandes e com grandes autonomias estão sobrando, em grandes quantidades. Muitos aviões desse tipo estão sendo transformados em aviões cargueiros. Não existe aviões cargueiros em estoque. Todos estão voando, mesmo os muito velhos. Existe uma fila de espera bem grande de aviões novos cargueiros. Principalmente os aviões muito grandes e com grande autonomia.

Os especialistas tentam estimar a retomada do mercado de voos. Falam que ela vai acontecer até 2025. O que é uma previsão, que pode acontecer, ou não. O quanto mais demorar, mais difícil será a sobrevivência da Boeing e da Airbus. A Embraer é uma empresa bem menor e já fez grandes cortes no seu quadro de pessoal. Ela está numa situação bem mais confortável para a sua sobrevivência no curto e médio prazo. Consegue sobreviver com uma demanda bem menor. O que não acontece com as duas maiores, que precisam de uma cadência maior de produção para manterem a estrutura atual funcionando. Elas fizeram alguns cortes na produção, mas não o suficiente para sobreviver a atual demanda baixa de vendas. Muitas dessas vendas foram feitas com preços muito baixos. Sem grandes descontos está muito difícil fazer vendas. Algumas, mesmo, abaixo do custo de fabricação. Elas estão consumindo reservas financeiras numa velocidade muito grande. Airbus e Boeing estão fazendo um grande jogo de encenação.

A empresa que está situação mais delicada é a Boeing, pois, antes da epidemia, já estava em dificuldades, por causa de problemas técnicos com os seus produtos. Vários deles tiveram problemas de certificação. Alguns ainda continuam. Ainda não é possível antever quando esses problemas técnicos vão terminar. A sua cadência de entrega de aviões prontos caiu bastante. Os estoques de aviões prontos, sem certificação para voar, são bastante grandes. A cadência de produção de vários aviões foi diminuída, mas está ainda maior que a cadência de entregas. Muitas vendas só foram feitas após grandes descontos. O que diminuiu muito a lucratividade da empresa. É muito provável que ela esteja tendo grandes prejuízos, que podem ser escondidos, por algum tempo, mas não para sempre. Ou seja, a Boeing está operando com grandes prejuízos. Em algum momento isso vai chegar ao mercado. E quando chegar é porque a crise já estourou.

A Airbus está em situação um pouco melhor, mas não tanto. Ela conseguiu manter uma grande cadência de entregas, nos dois primeiros anos da epidemia, só um pouco abaixo do seu pico, mas fez grandes pressões nos seus clientes. Muitos não gostaram das condições de negociação. Só estão aguardando melhores condições para escaparem dos antigos contratos de compras. Muitos desses conflitos estão vindo à luz só agora.

Existe uma grande névoa no mercado de aviões novos. É possível que a demanda caia ainda mais. A atratividade dos aviões usados está muito grande. Pois os estoques deles estão muito altos, em consequência, os preços estão muito baixos. Isso cria uma grande pressão nas novas vendas. A diferença entre os preços dos aviões usados e os novos é muito grande. É muito provável que as vendas já feitas sofram mais adiamentos nas entregas. O fluxo de caixa das empresas fabricantes de aviões deve piorar, mais ainda, nos próximos anos. Esse é um ponto decisivo. As coisas devem ainda piorar bastante antes de melhorar. O desafio é ter capital para sobreviver. O quanto maior for a empresa e menores os cortes feitos na cadeia de produção, maior será essa dificuldade. Esse é um quadro comum à Boeing e a Airbus.

Para dificultar as coisas, o Banco Central dos Estados Unidos (FED) iniciou um movimento da subida das taxas de juros. O que deve aumentar muito as despesas financeiras das empresas em dificuldades. Isso vale para todas as empresas, não só as construtoras de aviões. As empresas automobilísticas tradicionais estão em situação bem mais difícil, com a chegada dos veículos elétricos. O pico da crise deve acontecer nos próximos dois ou três anos. Os últimos dois anos já foram difíceis. Mas, o futuro imediato vai ser mais desafiador ainda para o setor industrial mundo afora, não só na aviação.

O que deve disponibilizar novas oportunidades. Estamos vivendo um momento de grandes transformações. Em vários ramos, não só no de aviação. As transformações serão profundas. O Brasil tem uma rara oportunidade de crescer no segmento de aviação. Esse é um segmento que vários países têm dificuldade de entrar. Entre eles a China e a Rússia. O Brasil está numa situação privilegiada. A sua imagem no mercado é muito boa. Os seus produtos são vistos como produtos de qualidade.

O que está faltando é a Embraer ter uma linha completa de produtos. A Embraer cresceu tentando evitar um confronto com os grandes fabricantes de aeronaves: Boeing e Airbus. O seu espaço era os aviões regionais. Um mercado menor, que não interessava os grandes fabricantes. A Embraer foi bem-sucedida nesse segmento. O seu maior concorrente foi a Bombardier.

Chegou um momento, no passado, que a Bombardier ficou em sérios apuros. Não conseguia mais concorrer com a Embraer. Para tentar sobreviver, a Bombardier invadiu o espaço das duas maiores, e projetou a Série C. Aviões que competiam com a Boeing e a Airbus na faixa dos aviões menores, até 165 passageiros. Um pouco acima da Embraer, que chega a 150 passageiros. Isso acabou com a paz no mercado. Os dois gigantes se sentiram incomodados. E tentaram tirar o intruso com uma dura concorrência de preços. Ofereciam aviões maiores com o preço mais baixo que os aviões da Série C da Bombardier. Fazer dumping é uma prática comum neste mercado, apesar de ser uma prática imoral.

A alternativa da Bombardier foi entrar no jogo dos gigantes e começou a vender os seus aviões da Série C abaixo do custo de fabricação. Foi uma alternativa extremamente arriscada. Era evidente que essa estratégia não iria longe. O intruso não suportou e quebrou. Sobrou a alternativa de vender o seu projeto para a Airbus a preço de banana. Isso tirou a paz no mercado.

A Boeing se sentiu ameaçada e propôs uma aliança com a Embraer. No início, a proposta era a compra pura e simples da Embraer. O governo brasileiro se opôs, por causa dos projetos militares que a Embraer tinha desenvolvido e ainda estava desenvolvendo. O acordo caminhou na direção de uma associação da Boeing com a parte da aviação comercial da Embraer. Mas no meio do caminho a Boeing entrou em uma séria crise: dois 737 Max caíram matando 350 pessoas. O avião foi aterrado pela FAA (Órgão Regulador Norte-americano). A Boeing começou a lutar pela sobrevivência. Teve que deixar os planos de associação com a Embraer de lado, com uma desculpa esfarrapada.

A Embraer se sentiu como uma noiva quarentona que foi abandonada no pé do altar. Precisava recomeçar a vida. Tinha bons produtos, que não estavam vendendo. Aos poucos, as vendas começavam a pingar e a Embraer conseguiu sobreviver a duras penas. Este é o momento atual, garantir a sobrevivência.

É evidente que a Boeing e a Airbus voltarão a vender aviões, que concorrem com os produtos da Embraer, abaixo do preço, assim que puderem. Essa é a lei do mercado. Uma forma de defesa é a Embraer aumentar o seu leque de produtos, para tornar essa estratégia inviável para as duas empresas. Foi essa estratégia que viabilizou a Airbus. A Boeing até tentou tirar a Airbus do mercado, mas não conseguiu, pois, a Airbus estava fabricando uma gama muito ampla de produtos. Ela tinha crescido muito para ser abafada com a estratégia de dumping.

Essa é uma estratégia de sobrevivência para a Embraer: crescer na crise. Para isso vai ter que atacar e criar produtos, principalmente aviões maiores, que possam completar a linha de produtos da Embraer. E esses produtos deverão ser sensivelmente melhores, que a geração anterior dos grandes aviões que estão estocados. Eles precisam ficar obsoletos tecnologicamente. A melhor defesa é o ataque.

Sem ousadia, a Embraer não vai conseguir sobreviver por muito tempo. Aliás, foi a ousadia que trouxe a Embraer ao lugar que está. Os desafios, no passado, foram muitos. Agora não vai ser diferente.

É necessário que a Embraer mude a sua estratégia, de ficar só nos aviões regionais, e lute pela liderança do mercado mundial de aviões civis em toda a gama de produtos, desde os pequenos até os grandes. Pois todos os fabricantes mundiais de aviões civis vão caminhar para vender produtos num largo espectro. O quanto antes a Embraer mudar a sua estratégia, maior será a sua chance de sobrevivência.

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